segunda-feira, 19 de novembro de 2007
Ficção III
“Eu vejo você em mim, talvez sejamos parte de um mesmo explosivo, não sei”. Trata-se de uma suposição, mas me contenta como resposta. Talvez afinal não sejamos assassinos um do outro, talvez sejamos algozes, em sociedade, da explosão, do caos eminente, dessa hecatombe devir. Não nos apartamos porque não seria nada saudável nos sentarmos no canto do aeroporto, na composição lotada do trem, na praça pública.
Assim, construo um lar para nós dois, com o que lhe posso oferecer, com meu sustento. Por vezes tenho a desconfortável sensação que lhe tenho de afagar e entreter como um bufão para que não principie ou permita que seu timer seja desligado. “Estar prestes, não significa estar quase” lhe digo “estar quase não significa ter sido detonado”, pois a lógica dos explosivos não é a mesma do mundo.
Conto-lhe parábolas dos nossos semelhantes como aquelas cestas de Argel carregadas por enzimas inocentes e frágeis. Era preciso furar o bloqueio do exército francês cumprir o trajeto na euforia dos pied noir igualmente inocentes e eufóricos para dar nos cafés, nos pontos de ônibus. “Nós ainda nos estamos conhecendo”, lhe peço, imitando seus olhos tímidos para não intimidar.
Daí, furamos o bloqueio das portas de casa e esperamos a condução no ponto sem nos sentarmos no banquinho para não dar pinta de ilícitos. Assim como no ônibus quase vazio permanecemos de pé, colados um no outro, a deixar nosso enredo misturar-se à fala dos outros poucos passageiros que jamais se furtam de embarcar e desembarcar à nosso despeito.
A cidade tampouco se esquiva de ir se transformando de bairro em bairro, de Jardim Botânico em Botafogo e depois em Copacabana e depois em Ipanema. Tal que ele me dá uma orquídea, um insulto, se aproveita de mim e, em seguida, me leva ao Posto 9, seguindo essa seqüência. Posso prever a sua reação quando andarmos até o Leblon, mas já não temos tempo para aparências ou superficialidades. “Vai ser aqui mesmo, ao ar livre, no meio da juventude, nessa gente que daqui a pouco vai aplaudir o sol se pôr detrás da silhueta daquela favela”.
Abraço-me a ele. “O quão alto posso voar?” repito a pergunta de quando nos conhecemos e ele apenas deu de ombros. Pisca o olho pra mim, olha ao redor e, tum!
sexta-feira, 28 de setembro de 2007
Ficção II
A cidade é colorida à seu modo, são roupas, outdoors, é churume. O barulho é intenso, mas ela, a mulher de negro, não produz nenhum.
Chega em casa. Numa sala pontiaguda, um bebê está sentado no chão, distraído por um trigrezinho de pelúcia, e uma velha ronca na cadeira de balanço. “Mamã, mamã” ele balbucia. Ela tem um olhar trágico, mas que não é expressão ou lágrima. É característica física. Segue para o seu quarto e o bebê lhe estende a mão como quisesse toca-la.
Senta na penteadeira, retoca a maquiagem. Dá tons mais fortes ao batom, enrubesce o rosto de blush, enegrece as linhas dos olhos com lápis.
O bebê engatinha pelo corredor do apartamento precariamente carregando o tigre em uma das mãos, mas com obstinação. “Mamã, mamã”.
E mamã está se pondo bonita no quarto, vestindo um chapéu de flores puídas desses que se vê nos brechós. É rosto e chapéu, pois o corpo ainda está coberto de negro. Levanta a sobrancelha esquerda e seu rosto em pedra imediatamente desmancha, deforma. Envolve uma alpaca violeta no pescoço ao ouvir “Mamã, mamã” já na entrada do quarto.
Lança um olhar rápido e no mesmo brusco se levanta, fecha a porta, fazendo com que o bebê retroceda e sente meio atrapalhado, meio espantado, com o tigre no colo.
Ela envolve uma saia de tule por cima do brim, levanta a blusa deixando à mostra o branco do ventre. Toca o telefone, uma buzina, a campainha e nada, mas nada faz parar o ritual em curso. Descalça e pinta as unhas dos pés.
“Ma-mã!” o bebê vai falando lentamente. “Ma-mã”. Joga-se pra frente e dá na porta com a mão três vezes. Retrocede. “Ma-mã”.
Ela se levanta, vai até a vitrola do quarto. Um allegro. Primeira nota, segunda nota – ela conta nos dedos. E depois os seguintes passos contam a terceira e a quarta e a quinta.
“Ma-mã... Ma-mã... Ma-mã...” até que é interrompido pelo abrir das portas e vê que sua mã já não é sua mã. Ela se curva até o chão em quase malabarismo, como mostrasse a mistura do chapéu à altura da criança, e no passo da música se movimenta em dança, espasmo ou loucura – se é que seus movimentos não os tivessem misturado.
O bebê está perplexo, mas a observa evoluir com atenção. Um pulinho, um grito, uma reverência. Ele senta o tigrezinho de pelúcia na cabeça e a reverencia de volta. Eles se entreolham – não é sua mã, não é seu filho. Aproximam-se sem fugir do olhar em hipnose. Não há mais buzina nem telefone nem campainha. Há a música num momento de sobriedade e mistério.
Quando pouco mais de um palmo os separa, ele leva os dedos aos lábios dela, sem tirar o tigrezinho do cocuruto. Passa os dedos lentamente como percebesse a grossa textura do batom. Ela morde os lábios pintando o dente e ele leva os dedos vermelhíssimos ao rosto riscando o canto dos olhos com estivesse se maquiando.
A mulher ascende, percorrendo o drama das notas que já vão descendo lentamente, gordurosas e cálidas.
Terminada a música, vem o aplauso. De susto o bebê se agita quase se fundindo ao coro das palmas, com seus olhos mais parecendo duas pequenas aranhas rubras, brilhando! E ela abre os braços e com a ponta dos dedos, sem perder a postura, fecha a porta.
Quando saca o chapéu da cabeça, ouve seu filho balbuciar lá de fora.
quinta-feira, 13 de setembro de 2007
Ficção
Esquecível é o nada, a reflexão sem fato, o ócio sem um prévio ou subseqüente desassossego. Esquecíveis são dias como aqueles, anteriores ao repente, em que não havia registrado nada, senão um par de números de entrega delivery no celular. Delivery, pois tampouco queria sair para comprar uma pizza ou um cigarro na padaria três quadras de seu apartamento.
Para buscar inspiração, ligou a TV. Pago por ela, repetia ao lembrar-se das contas que sugavam como um ralo o dinheiro de sua conta em débito automático. Preciso de uma recompensa por essa fortuna. Egito antigo, saia justa, paraíso tropical e dramas familiares podiam bem lhe compor uma história, um tema. E uma prostituta, concubina grávida de Tutancâmon lhe veio a cabeça, mãe de um príncipe bastardo cujo sangue nunca lhe traria fortuna. Como, enfim, nomear uma personagem egípcia sem torná-la homônima duma figura consagrada pela história, pelos registros que pudesse encontrar na Wikipedia? Como nomear o filho? Como nomear as colegas?
Seus personagens não terão nomes, serão somente pronomes pessoais e adjetivos. Bela, mas pobre, encontrou na boceta uma fonte de renda. Desgraçada pela gestação, acabou desempregada.
Será um épico de uma ordinária figura sofrendo problemas mundanos, sem heroísmos nem catástrofes. Será beneficiada pela bondade de estranhos, como ele deseja que todos sejam os que na gestação estejam desamparados. Olha para o telefone e sofre um pouquinho pelo silêncio insistente de sua campainha.
Será um épico duma abandonada pela idéia. Por que não abandona tudo, vai para um estranho rincão na Galiléia e jura para um trouxa qualquer que é virgem e que lhe fora anunciada secretamente a maternidade do filho de Deus? Não estaria mentindo – o Faraó é Deus, afinal.
Resolverá contar com a clemência do Faraó – ausente, de intocável reputação e de frutos incertos. Será que lhe irá proporcionar um conforto eterno? Será?
Antes de botar um ponto final na história, sua bela esposa adentra o apartamento do trabalho e suspira: "Como estou cansada!". Ele desliga o computador e vai implorar uma rapidinha para aliviar a tensão.
E você, já não tão em branco quanto antes, não abriu cortina nenhuma nem arrancou aplausos de ninguém. Mas, quem sabe um dia essa egípcia ainda não levanta as tralhas e vai ganhar o mundo?...
segunda-feira, 16 de julho de 2007
Meu Artista Favorito
quarta-feira, 4 de julho de 2007
A Noite dos Sabres
terça-feira, 26 de junho de 2007
Paris, RJ
segunda-feira, 28 de maio de 2007
O quão alto posso voar?
O estranho da rua me chama de louco e sai batendo o pé puto da vida. Pensa que sou um viadinho, que não tenho mais o que fazer e, pior, com seu bermudão de marca e um tênis todo fodido, tem certeza absoluta que tem, afinal, mais o que fazer; ou, ao menos, sai convicto disso. O estranho da rua não quer ouvir lucubrações de um alucinado bem vestidinho. Isso não se repete quando faço a pergunta à ele.
Depois que pronuncio vagarosamente a minha pergunta, ele demora um pouco a responder. Julga-me um sábio: define meus traços necessariamente pelo que ouviu de mim e credita minhas olheiras a intensas noites de lucubrações poéticas e não de bebedeiras baratas. Entretanto, é um cético. “Quando o sol fizer derreter suas asas, meu caro, você vai se esborrachar!...” correndo os dedos em meus cabelos.
Uma afirmação dessas, sobretudo dele, que carrega em si qualidades já mencionadas nesse canal, é difícil de ser digerida com tranqüilidade. Um esquecido ÊLE, já meio verde de asfixia, de repente dá as caras. Caminha no cantinho do quarto de lá pra cá, de cá pra lá, lentamente; revelando-se no feixe de luz da janela vez em quando, embora não produza nenhum som nem pronuncia uma palavra. Com as mãos no queixo, concorda, concorda e concorda. Uma unanimidade, afinal!, para o meu mais completo espanto.
“Você pode continuar voando, não me entenda mal...” e, de súbito, ÊLE pára num halt furioso. “... nem tão perto do chão, nem tão perto do sol”, ponderando docemente. Cada lugar lindo que mencionava ou cada benefício que me dava do vento fresco que sopra a poucos metros do solo, ele percebia que a minha perplexidade anterior dava lugar a uma calma imensa.
“Cínico!” rosnava ÊLE no canto, “No mundo em que vivemos, é tudo ou nada, it’s all or none!”.
“O cheiro e barulho do oceano, eqüidistante e sonante aos mistérios do universo. A certeza da terra firme e o infinito do infinito...”.
“Ah!, mas se teu pai te visse tão medíocre e contentado!”.
“Uma vela para a mãe natureza e uma vela para Deus...”.
E eu, que só queria mesmo a opinião de um estranho, fui bombardeado pela questão por todos os lados. Peço um minuto de silêncio: de que adianta comparar o céu de Ícaro ao de Galileu, afinal, sem ter ainda crescido as asas?
ÊLE se tranquiliza. E ele começa a massagear minhas costas a ver se o atrito estimula o processo.
quarta-feira, 23 de maio de 2007
Meu Sapato Novo
quinta-feira, 10 de maio de 2007
Uma tarde com eles
Conversava com ele, não com ÊLE, porque com ÊLE já não troco muitas palavras. E ele tinha deliciosas três letras minúsculas, sem acento. Estava sentado de pernas humildemente cruzadas; ele e sua voz calma, seu rosto sem rugas. Prostrava a cabeça, abria os olhos sem espanto, desviava o lusco-fusco do rosto com as mãos; ele me dizia: querido, você consegue sentir alguma coisa no ar?
De um canto escuro da sala, ÊLE dá de ombros e acende um baseado. Escuta nossa voz numa trip muito louca, às vezes interrompida por ligações do celular e outras responsabilidades pendentes. Esfrega os olhos vermelhos e nos observa com a visão embaçada. Provavelmente vê muitas cores, porque elas existem - mas as julga clichês do surrealismo. ÊLE dá de ombros e essa será a contestação da noite.
Conversava com ele e ele, sim, me olhava nos olhos e aguardava, ansioso, a última palavra para, então, ter ouvido tudo; articulava-se; gesticulava um pouco; sublinhava algumas passagens do meu texto; e, enfim, falava até a última palavra para ter a certeza de que falou tudo. Entre nós não havia gordura.
Caretas, resmungava ÊLE de longe, acinzentado por dois maços e meio de cigarro. ÊLE dá de ombros.