segunda-feira, 28 de maio de 2007

O quão alto posso voar?

Se você soubesse, me diria?, pergunto a um estranho na rua que me julgará mais pela minha roupa, mais pelos meus traços que necessariamente pelo que ouviu de mim. É dessa opinião que preciso: olhe para mim com minúcia, perceba o contorno das minhas olheiras e, por favor, não se esqueça da minha nova silhueta – denotações de esforço. O quão forte posso bater minhas asas e o quão nítida e ampla será minha vista lá do alto?

O estranho da rua me chama de louco e sai batendo o pé puto da vida. Pensa que sou um viadinho, que não tenho mais o que fazer e, pior, com seu bermudão de marca e um tênis todo fodido, tem certeza absoluta que tem, afinal, mais o que fazer; ou, ao menos, sai convicto disso. O estranho da rua não quer ouvir lucubrações de um alucinado bem vestidinho. Isso não se repete quando faço a pergunta à ele.

Depois que pronuncio vagarosamente a minha pergunta, ele demora um pouco a responder. Julga-me um sábio: define meus traços necessariamente pelo que ouviu de mim e credita minhas olheiras a intensas noites de lucubrações poéticas e não de bebedeiras baratas. Entretanto, é um cético. “Quando o sol fizer derreter suas asas, meu caro, você vai se esborrachar!...” correndo os dedos em meus cabelos.

Uma afirmação dessas, sobretudo dele, que carrega em si qualidades já mencionadas nesse canal, é difícil de ser digerida com tranqüilidade. Um esquecido ÊLE, já meio verde de asfixia, de repente dá as caras. Caminha no cantinho do quarto de lá pra cá, de cá pra lá, lentamente; revelando-se no feixe de luz da janela vez em quando, embora não produza nenhum som nem pronuncia uma palavra. Com as mãos no queixo, concorda, concorda e concorda. Uma unanimidade, afinal!, para o meu mais completo espanto.

“Você pode continuar voando, não me entenda mal...” e, de súbito, ÊLE pára num halt furioso. “... nem tão perto do chão, nem tão perto do sol”, ponderando docemente. Cada lugar lindo que mencionava ou cada benefício que me dava do vento fresco que sopra a poucos metros do solo, ele percebia que a minha perplexidade anterior dava lugar a uma calma imensa.

“Cínico!” rosnava ÊLE no canto, “No mundo em que vivemos, é tudo ou nada, it’s all or none!”.

“O cheiro e barulho do oceano, eqüidistante e sonante aos mistérios do universo. A certeza da terra firme e o infinito do infinito...”.

“Ah!, mas se teu pai te visse tão medíocre e contentado!”.

“Uma vela para a mãe natureza e uma vela para Deus...”.

E eu, que só queria mesmo a opinião de um estranho, fui bombardeado pela questão por todos os lados. Peço um minuto de silêncio: de que adianta comparar o céu de Ícaro ao de Galileu, afinal, sem ter ainda crescido as asas?

ÊLE se tranquiliza. E ele começa a massagear minhas costas a ver se o atrito estimula o processo.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Meu Sapato Novo

Havia saído para fumar um cigarro lá fora - a lei de Nova York não permite aquela fumaceira charmosa dentro dos bares e boates. Acendi e, no frio, a fumaça do tabaco se misturava à fumacinha produzida pelo calor da minha respiração. Um sujeitinho se aproximou e perguntou se podia lustrar meus sapatos.
 
Eu estava de bom humor, e por isso, na disposição de mostrar a friendliness latina, brasileira, dei um tapinha nas costas dele e menti que havia deixado a carteira lá dentro, logo não poderia pagá-lo pelo serviço. Sorri, falamos um pouco e ele, por fim, disse que lustraria meus sapatinhos detonados pela neve de graça. Um dia você me paga, enquanto agaixava-se.
 
Naquele tempo em que não estava cercado de tanto amor e amigos da vida, com os sentimentos à flor de uma pele umedecida por diversos copos de cerveja, vi meus olhos embaçarem emocionados. Meti a mão na carteira, confessei minha mentira e dei cinco dólares para o sujeito.
 
Hoje vou numa entrevista de emprego. Quando peguei meus sapatos ainda brilhando pela gentileza daquele adorável estranho, lembrei-me dele e das suas sinceridades. Onde estará meu amigo perdido? Será que ainda vaga pelas ruas do Village distribuindo seu sorriso e seu brilho por um mundo que ainda prefere gastar aqueles cinco dólares numa mísera cerveja a mais?
 
Boto meu sapato novo, rezo por ele, e vou passear.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Uma tarde com eles

Conversava com ele, não com ÊLE, porque com ÊLE já não troco muitas palavras. E ele tinha deliciosas três letras minúsculas, sem acento. Estava sentado de pernas humildemente cruzadas; ele e sua voz calma, seu rosto sem rugas. Prostrava a cabeça, abria os olhos sem espanto, desviava o lusco-fusco do rosto com as mãos; ele me dizia: querido, você consegue sentir alguma coisa no ar?

De um canto escuro da sala, ÊLE dá de ombros e acende um baseado. Escuta nossa voz numa trip muito louca, às vezes interrompida por ligações do celular e outras responsabilidades pendentes. Esfrega os olhos vermelhos e nos observa com a visão embaçada. Provavelmente vê muitas cores, porque elas existem - mas as julga clichês do surrealismo. ÊLE dá de ombros e essa será a contestação da noite.

Conversava com ele e ele, sim, me olhava nos olhos e aguardava, ansioso, a última palavra para, então, ter ouvido tudo; articulava-se; gesticulava um pouco; sublinhava algumas passagens do meu texto; e, enfim, falava até a última palavra para ter a certeza de que falou tudo. Entre nós não havia gordura.

Caretas, resmungava ÊLE de longe, acinzentado por dois maços e meio de cigarro. ÊLE dá de ombros.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

O Retorno

Senti falta daqui. Um espaço assim onde eu consigo falar tudo o que me foge a cabeça no dia a dia, seja por esquecimento ou por falta de ouvintes especificamente interessados. É ainda um livro de viagens, mas, por que não?, vou incluir umas viagens que tenho feito no retorno ao Rio de Janeiro... àquele inferno que é o Rio... à Cidade Maravilhosa.
 
O que sentir pelo Rio de Janeiro? Calor, certamente. Já era o fim de abril quando pensei que nunca mais deixaria de suar. O aniversário da Bruna chegou e, graças a ela, dissipou a massa intergalática estática de ar fervendo que pousava sobre o estado. Também, o calor da gente. Não de todo mundo porque o carioca não está mesmo, como me havia alertado uma amiga, lá muito bem humorado. Calor de uma gente específica que tem transformado a minha agenda num sonho a que fui em busca lá em Nova York. Tardes com designers e jovens cineastas para a edição de uma revista, reuniões sobre um documentário, pequenas realizações cinematográficas, almoços com minhas ex-chefes, programas culturais e noites escolhidas a dedo. Noites fabulosas, literalmente.
 
Não é a cidade, diz a experiência, é o espírito. Mas aí de lembro do nascer do sol no Arpoador que eu e dois caros amigos presenciamos, e torna-se necessário reverenciar a cidade.
 
Quando não estou engajado em uma dessas atividades fabulosas, tenho passeado muito por aqui - Ipanema ou Copacabana - com a Shaia. Ipod nos ouvidos e óculos escuros, fico só observando o dia passar no rosto das pessoas. Estou cada vez mais sensível, entretanto, a ter que acorrentar a Shaia e levá-la feito uma prisioneira para um banho de sol. Fito seus olhinhos tristes, o pescoço arqueado pelo peso das correntes e tento dizer: "Não fui eu, meu amor, quem inventou isso... Foi ÊLE".
 
Daí começo a pensar NÊLE, cada vez com mais desprezo e cada vez mais frustrado por não ver a minha cadela correndo solta por aí. "Eu também uso uma dessas" repito, é claro, em pensamento. O desafio passa a ser, portanto, dar cabo DÊLE e das coleiras. Na esperança que eu ou Shaia não terminemos atropelados por um desses ônibus frenéticos.