sábado, 22 de março de 2008

Opiniões Fortes

Li recentemente o mais novo livro de JM Coetzee, ainda não publicado no Brasil, chamado "Diaries of a Bad Year" (Diários de um Ano Ruim). Nele, à parte de uma ficção bacana, o autor profere uma série de palestras sobre grandes temas e pequenas questões cotidianas. Como só tenho meu pequeno blog para falar dessas coisas, resolvi compilar algumas e compartilhar com os leitores, se é que eles existem.

Fiz algumas leituras recentemente muito distantes do habitual - a cerca, sobretudo, da história do Brasil. Essas leituras foram divididas em duas partes: livros do Ensino Médio e livros de pensadores brasileiros (em grande parte concatenados no excelente "Formação do Pensamento Político Brasileiro" de Francisco Weffort). Contei também com a memória para revisitar as salas de aula daquela época de escola.

Pude, assim, identificar as imensas discrepâncias de interpretação da nossa trajetória enquanto país entre as duas fontes.

É chocante perceber que nos ensinaram (e, provavelmente, continuam ensinando), por exemplo, que a atualmente celebradíssima mudança da corte de Lisboa para o Rio de Janeiro deveu-se exclusivamente aos acontecimentos políticos da Europa do século XIX. Igualmente chocante, é como essa transferência é encarada como um "presente" (uma "dádiva") da dinastia dos Bragança para a pobre colônia esquecida ao sul do Equador - especialmente quando é amplamente disponível e difundido o pensamento de figuras como Antônio Vieira, José Bonifácio Andrada, Joaquim Nabuco, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros.

Essa noção é claramente nociva à formação de uma identidade brasileira consciente da importância do país mesmo enquanto colônia. Passada ainda nos tempos de escola, ela permeia o nosso imaginário com uma história simplória, passiva e servil que parece estar a favor de interesses vários, que não o da formação de uma sociedade crítica e capaz de identificar e criar soluções para o país.

É sabido, por exemplo, que a transferência da corte para o Brasil já era alvitada pela dinastia dos Bragança mesmo antes das invasões napoleônicas. Pelo fato da colônia ter ultrapassado a metrópole em riquezas e importância geopolítica, o Brasil era vislumbrado como a salvação para uma dinastia que governava o país extremamente decadente que era Portugal.

Mesmo a relação entre a metrópole e a colônia fica deturpada nos livros didáticos do Ensino Médio, como pude verificar na obra de Weffort. Um exemplo é o do terremoto que devastou a cidade de Lisboa na segunda metade do século XVIII e dos socorros brasileiros para reparar a catástrofe, na forma de empréstimos a juros baixos - bem diferente do autocracia e tirania de Portugal sobre o Brasil que é passada nessas fontes.

O episódio da nossa independência também é bastante esclarecedor. Pressionado pelas cortes portuguesas, D. João VI retorna a Portugal e deixa seu filho aqui. Essa medida é interpretada nos livros didáticos de história muitas vezes de forma passional e ingênua: Pedro de Alcântara teria se encantado pelas terras tropicais, por exemplo, teria se apegado ao Brasil. Não deixa de ser uma ironia a essa versão que Pedro, vendo os Bragança ameaçados no trono português e diante de turbulências no governo brasileiro, tenha deixado o Brasil (que ele, supostamente, tanto amava) à própria sorte, com um filho de 5 anos em garantia.

A minha interpretação é de um varão tentando e, habilmente, conseguindo perpetuar a sua dinastia em duas coroas. Pode ser que não esteja correta, mas entendo que o ensino tal qual é passado elimina qualquer interpretação, contrária ou mesmo favorável. 

Aquela sociedade crítica, capaz de criar versões para história passada e mesmo para a corrente, se vê amarrada e ditada. A consequência imediata disso é, por exemplo, uma imprensa que é incontestável, mesmo sendo dominada por atores (grupos econômicos e, muitas vezes,  transnacionais) que pouco têm de altruístas. São capazes de levantar e derrubar governos, legitimar ditaduras e crimes de lesa-pátria, tendo uma sociedade com uma atuação, aí sim, passiva, simplória e servil.

(a continuar...)

quinta-feira, 20 de março de 2008

Alga

E mais uma vez chegara a uma ilha, pensou ao sentir a areia no rosto, invadindo a boca, e ao ver o nativo se aproximando para arrancar-lhe um bife da perna. O rosto dele me é familiar: um rosto mastigado pelo tempo e pelo sal que, sem espelho, já não se enxergava fazia anos - também um náufrago, deixado por dezenas de anos no meio do mar. Ao percebe-lo acordado se espanta!, mais uma coisa viva!, no meio daquele pedaço de terra ingrato que só lhe dava côco, água da chuva e sementes, muitas sementes. À confirmação de que está vivo reage com nenhum assombro, tenta arrancar alguma resposta: Você está bem? Qual o seu nome? De onde você vem? Tenta descobrir sua língua.

E ele, mais uma vez numa ilha, soergueu-se e caiu com força, rosto colado à areia. Escutou o velho náufrago fazer suas perguntas e permaneceu - ai de mim enfrentá-lo ou ouvi-lo; que o mar me trague de volta, me cuspa n'outro canto. Observava o rosto do companheiro e pensava: nunca, mais nunca mesmo. Quis dizê-lo, mas foi carregado à força até um porto seguro. Sentado na poltrona de plantas, o velho ofereceu água. Durante os goles, escutou-o sobre a cabana, sobre os côcos e a rotina dos dias. Não se detinha, entretanto, pois era distraído pela delícia d'água doce gole a gole.

Você pode viver aqui, lhe disse meio convite, e o hóspede refestelou-se para terminar a distração com um soninho de horas! Mas para tal, prosseguiu rude e ignorante como devem ser todos há muito afastados das boas maneiras, para tal, dedo em riste, vai precisar trabalhar!

No seu redor, a cabana eram folhas de coqueiro escoradas em uma complexa armação de restos de navios, e as estacas eram adornadas com estranhos desenhos, e os móveis tinham um formato inédito, uma utilização inusitada. Se precisava subir bem alto nos coqueiros para arrancar seu fruto, o velho havia inventado um guindaste; se precisava arrancar a carne do côco, talhara uma concha afiada. Que mais pudemos fazer, pensava o recém chegado, senão esperarmos outro barco, outro naufrágio, outra ilha? 

E o velho respondia num tom sábio e antigo: podemos ser!, olha só como estou sendo! Pegou-o pelo braço inconsciente das assaduras e levou-o consigo para lhe mostrar algo escondido. Estou aqui já faz décadas!, ou acha que eu nunca pensei isso tudo que você está pensando? Fala-me o que está pensando, vamos ver se é diferente?

Mas ele estava era mudo. Emudecido. Caminhou resignado até às atrações do velho náufrago sem dar um pio. Viu e ouviu um tipo de poesia que ele imprimia nas pedras, com lascas de madeira e montinhos de areia sobre a terra atendo-se apenas ao tema - desvarios do exílio numa ilha deserta! Lamentos, glórias, desafios. Sou como o limo que dá nessas pedras, professava o velho, sobrevive ao mar, ao sal e ao sol. Sobrevive ao calor e ao frio. É, sem poder ser, sozinho num pequeno pedaço de terra que só dá côco, água da chuva e sementes, muitas sementes. Os peixes que davam aqui perceberam seu predador, foram nadar num mar vizinho. Desvarios que o novato sentia seus dali alguns anos, embora se apegasse à vontade de que algum navio vivo lhe salvasse.

De volta ao acampamento, o velho lhe ofereceu uma mistura de raizes. Vai lhe fazer bem, acredite no que eu lhe digo: é a sílfide, um entorpecente, que lhe faria entrar em contato com os espíritos da ilha. Eles existem, falou como se tivesse certeza. Aliás existem mais coisas aqui do que julga a sua vã consciência. Além dos espíritos, também tem os demônios, as criaturas da noite, os canibais do outro lado da ilha. Você não pode ir lá, mas de jeito nenhum! Aquele lugar sombrio, que lugar mais terrível. Dizem, mas nisso não tenho certeza, que lá também vivem dez indiazinhas, todas virgens, prontas para saciar essa que é maior nostalgia dos náufragos. Nisso não tenho certeza, ao esvasiar completamente seu olhar por alguns mil segundos.

E ele estava era mudo. Emudecido. Segurou a sílfide com uma das mãos e com a outra coçou a cabeça indeciso. É um entorpecente mesmo?, pensou até cheirá-lo e quase engasgar de vez. 

Findos os mil segundos, o velho pegou também a sua porção e prosseguiu o sermão com: É uma erva sagrada, rapaz!, sempre o foi. Linda e branca, dá debaixo do solo, escondida por entre as plantas ordinárias. Toma e aproveita que o portal é finito e logo se fecha. Leve a mistura à boca e deixe-a misturar-se com a sua saliva, deixe-a reagir com as suas enzimas, deixe-a transformar a química do seu corpo. É uma erva sagrada, rapaz!, repetiu.

Botaram a mistura na boca juntos e não foram necessários mil segundos para que o velho lhe participasse da sensação que a droga causava no corpo: na barriga, no sentir do vento, no sentir da água. Vem comigo!, gritou num sopetão, olha que maravilha é pular e cantar?, num giro, num agudo, numa cambalhota n'areia. Vem! Levante-se! E aí já estava debatendo-se nas ondas, estirando-se nas pedras, sorrindo e entristecendo numa ginástica abdominal aplicada.

Será que o estou sentindo também?, passou a mão na barriga. Será que se imitá-lo tresloucado poderei senti-lo?

Levantou-se e berrou bem alto como se tentasse sentir a garganta entorpecida no grito. Chamou primeiro um navio e depois, tal que se adequasse, aos espíritos que não iam na sua vã consciência, e quando o viu, o velho náufrago, desaparecer dentro da cabana, talvez uma reza, uma conversa em privado, viu-se cara-a-cara com sua própria loucura. Vou é procurar minhas virgens!, respirou portanto. Essa erva sagrada, vou te contar um negócio, nem um baratinho!