sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Ficção II

Ela pisa com passos firmes pela cidade. Está de preto, toda de preto, tal que não há leitura para o que é calça, o que é blusa, o que é calçado. O cabelo é preto ou vermelho, forte, a pele é branca. Tem cara de aparição, de demônio, de anjo. Pisa com passos firmes, com determinação.

A cidade é colorida à seu modo, são roupas, outdoors, é churume. O barulho é intenso, mas ela, a mulher de negro, não produz nenhum.

Chega em casa. Numa sala pontiaguda, um bebê está sentado no chão, distraído por um trigrezinho de pelúcia, e uma velha ronca na cadeira de balanço. “Mamã, mamã” ele balbucia. Ela tem um olhar trágico, mas que não é expressão ou lágrima. É característica física. Segue para o seu quarto e o bebê lhe estende a mão como quisesse toca-la.

Senta na penteadeira, retoca a maquiagem. Dá tons mais fortes ao batom, enrubesce o rosto de blush, enegrece as linhas dos olhos com lápis.

O bebê engatinha pelo corredor do apartamento precariamente carregando o tigre em uma das mãos, mas com obstinação. “Mamã, mamã”.

E mamã está se pondo bonita no quarto, vestindo um chapéu de flores puídas desses que se vê nos brechós. É rosto e chapéu, pois o corpo ainda está coberto de negro. Levanta a sobrancelha esquerda e seu rosto em pedra imediatamente desmancha, deforma. Envolve uma alpaca violeta no pescoço ao ouvir “Mamã, mamã” já na entrada do quarto.

Lança um olhar rápido e no mesmo brusco se levanta, fecha a porta, fazendo com que o bebê retroceda e sente meio atrapalhado, meio espantado, com o tigre no colo.

Ela envolve uma saia de tule por cima do brim, levanta a blusa deixando à mostra o branco do ventre. Toca o telefone, uma buzina, a campainha e nada, mas nada faz parar o ritual em curso. Descalça e pinta as unhas dos pés.

“Ma-mã!” o bebê vai falando lentamente. “Ma-mã”. Joga-se pra frente e dá na porta com a mão três vezes. Retrocede. “Ma-mã”.

Ela se levanta, vai até a vitrola do quarto. Um allegro. Primeira nota, segunda nota – ela conta nos dedos. E depois os seguintes passos contam a terceira e a quarta e a quinta.

“Ma-mã... Ma-mã... Ma-mã...” até que é interrompido pelo abrir das portas e vê que sua mã já não é sua mã. Ela se curva até o chão em quase malabarismo, como mostrasse a mistura do chapéu à altura da criança, e no passo da música se movimenta em dança, espasmo ou loucura – se é que seus movimentos não os tivessem misturado.

O bebê está perplexo, mas a observa evoluir com atenção. Um pulinho, um grito, uma reverência. Ele senta o tigrezinho de pelúcia na cabeça e a reverencia de volta. Eles se entreolham – não é sua mã, não é seu filho. Aproximam-se sem fugir do olhar em hipnose. Não há mais buzina nem telefone nem campainha. Há a música num momento de sobriedade e mistério.

Quando pouco mais de um palmo os separa, ele leva os dedos aos lábios dela, sem tirar o tigrezinho do cocuruto. Passa os dedos lentamente como percebesse a grossa textura do batom. Ela morde os lábios pintando o dente e ele leva os dedos vermelhíssimos ao rosto riscando o canto dos olhos com estivesse se maquiando.

A mulher ascende, percorrendo o drama das notas que já vão descendo lentamente, gordurosas e cálidas.

Terminada a música, vem o aplauso. De susto o bebê se agita quase se fundindo ao coro das palmas, com seus olhos mais parecendo duas pequenas aranhas rubras, brilhando! E ela abre os braços e com a ponta dos dedos, sem perder a postura, fecha a porta. 

Quando saca o chapéu da cabeça, ouve seu filho balbuciar lá de fora.

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