quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Ficção

Ele teve, de repente, que parar diante de você, página em branco. Sentou-se, sentiu medo e, ao esquivar-se, sentiu como estivesse fugindo. Já havia fugido do destino algumas vezes, mas também já o havia abraçado e nesses momentos foi quando esteve mais feliz. É preciso lembrar disso, repete algumas vezes depois de digitar as primeiras palavras. Preciso lembrar disso. Do abrir das cortinas. Do ato. Dos aplausos.

Esquecível é o nada, a reflexão sem fato, o ócio sem um prévio ou subseqüente desassossego. Esquecíveis são dias como aqueles, anteriores ao repente, em que não havia registrado nada, senão um par de números de entrega delivery no celular. Delivery, pois tampouco queria sair para comprar uma pizza ou um cigarro na padaria três quadras de seu apartamento.


Para buscar inspiração, ligou a TV. Pago por ela, repetia ao lembrar-se das contas que sugavam como um ralo o dinheiro de sua conta em débito automático. Preciso de uma recompensa por essa fortuna. Egito antigo, saia justa, paraíso tropical e dramas familiares podiam bem lhe compor uma história, um tema. E uma prostituta, concubina grávida de Tutancâmon lhe veio a cabeça, mãe de um príncipe bastardo cujo sangue nunca lhe traria fortuna. Como, enfim, nomear uma personagem egípcia sem torná-la homônima duma figura consagrada pela história, pelos registros que pudesse encontrar na Wikipedia? Como nomear o filho? Como nomear as colegas?

Seus personagens não terão nomes, serão somente pronomes pessoais e adjetivos. Bela, mas pobre, encontrou na boceta uma fonte de renda. Desgraçada pela gestação, acabou desempregada.

Será um épico de uma ordinária figura sofrendo problemas mundanos, sem heroísmos nem catástrofes. Será beneficiada pela bondade de estranhos, como ele deseja que todos sejam os que na gestação estejam desamparados. Olha para o telefone e sofre um pouquinho pelo silêncio insistente de sua campainha.

Será um épico duma abandonada pela idéia. Por que não abandona tudo, vai para um estranho rincão na Galiléia e jura para um trouxa qualquer que é virgem e que lhe fora anunciada secretamente a maternidade do filho de Deus? Não estaria mentindo – o Faraó é Deus, afinal.

Resolverá contar com a clemência do Faraó – ausente, de intocável reputação e de frutos incertos. Será que lhe irá proporcionar um conforto eterno? Será?

Antes de botar um ponto final na história, sua bela esposa adentra o apartamento do trabalho e suspira: "Como estou cansada!". Ele desliga o computador e vai implorar uma rapidinha para aliviar a tensão.


E você, já não tão em branco quanto antes, não abriu cortina nenhuma nem arrancou aplausos de ninguém. Mas, quem sabe um dia essa egípcia ainda não levanta as tralhas e vai ganhar o mundo?...

Um comentário:

Anônimo disse...

O meu preferido