segunda-feira, 16 de julho de 2007

Meu Artista Favorito

Uma piscina de medidas indefinidas. Não há tela nem o ilusório vazio de uma tela em branco. A piscina lhe proporciona um vazio de facto, o transparente, o nada - ou, por que não?, o caldo nutritivo. Ele joga o cenário em cor, uma primeira camada, deixando o espaço formar-se, não por acaso, jura, mas pelo movimento premeditado da tinta. Num canto, pode pingar uma gota de branco e dali fazer surgir um vulto, uma aparição fugaz, a sugestão de um rastro. Uma gota vermelha em outro, e pronto!, tal brancura pode ter se ferido, menstruado ou vestido uma echarpe estravagante.
 
Daquele universo cuida ele. Não por acaso, jura, pois o acaso persegue e, sem surpresas, percebe que não existe. É ele quem estimula a criação daqueles objetos que, na obra final se revelam, como tivessem percorrido um trajeto.
 
É nosso trabalho, portanto, desvendar em reverso a narrativa daquela gênese. Ele nos obriga a descobrir a idade da múmia, o formato original daquela ruína. Se a coluna está pendida ou, quiçá, esfarelada, nos obriga a imaginar o movimento que a desverticalizou.
 
Ele desforma o bolo e o exibe na parede. Pode nos dar uma pista, mas não falará mais nada - como se o olhar de quem o admira fosse o ponto final de sua épica gestação. Meu artista favorito não é egoísta e enxerga a pintura, a primeira das artes, como sujeito, não como objeto. Assim, a divide com o mundo, não por acaso, jura, mas por seu desejo de tê-lo transformado.

para mais informações http://web.mac.com/foliomarcelomello


quarta-feira, 4 de julho de 2007

A Noite dos Sabres

Foi durante a noite dos sabres, onde vi findarem-se os esparadrapos e lencinhos. Foi durante a noite dos sabres, onde o vi deitado na cama implorando uma degola rápida e sem sofrimento. Foi durante a noite dos sabres - que voavam sobre nossas cabeças e restejavam no entorno dos pés, desaforados - e naquela noite, da manhã iminente e luminosa porvir, pouco foi poupado.
 
"Vou gritar e vou chorar para que você entenda a minha dor, seu estúpido!" dizia ele, rastejando, jurando que não havia atirado a primeira lâmina. "Não fui eu, meu caro...", dizia soluçando docemente, quando para meu espanto virou-se erguendo o braço e apontou pr'um canto escuro do quarto, "foi ÊLE!".
 
Tão perplexo, três notas em descendo de uma melodia recorrente no passado vêm num estampido: enfim, trocaram um olhar! Estão se encarando! E no meio do fogo cruzado, sem nem me preocupar com os lanhos que me iam maculando a lívida maciez da pele, o encarava com o rabicho do olho, como se o acusasse de ter quebrado uma regra de ouro. "Foi ÊLE!" repetia sem se dar conta do meu desegrado, "foi ÊLE que te assombra dia a dia, noite a noite - e que agora resolveu atirar para todos os lados, para cima e para baixo!".
 
Foi durante a noite dos sabres, onde o sangue derramado ia endurecendo, coagulando e deixando marcas que quase se podiam confundir com churume. Sangue meu e dele que não nos esquivamos e abrimos nosso peito para o mundo como de costume.
 
"Moi?" sussurrava ÊLE ainda na penumbra, enquanto ouvíamos sua gargalhada fúnebre e incólume à estridência do quarto. "Aqui nesse canto não há sangue nem dor" enquanto demonstrava arqueado, fetal, com as mãos tampando os ouvidos e os olhos uma situação de aparente previlégio.
 
E foi durante a noite dos sabres que, na terra arrasada, decidi não me esconder no escuro do quarto e confiar, apegado às sobras, na iminência da manhã luminosa.