sexta-feira, 2 de março de 2007

Uma Visita à Chrissy Dodgers

Ao entrar no apartamento de Chrissy Dodgers naquela noite de terça, um fortíssimo cheiro de jalapeño, chilli e nachos tomava conta do espaço. Quatro gatos e dois cachorros gêmeos ocupavam todos os assentos e seus pêlos deixavam meu nariz vermelho só de pensar.
 
Bem, não todos os assentos. A mãe de Chrissy, indiferente à nossa chegada, estava pousada numa almofada do sofá que, por estar mais baixa que as outras, denunciava sua permanência estendida por ali. Chrissy e seu sorriso fabuloso, incapaz de ser captado por qualquer foto que eu já tinha visto, insistia para que nos sentíssimos à vontade, enquanto equilibrava garrafinhas de Corona Lights, um cigarrinho daqueles e espanava os gatos do sofá imundo. "É uma noite mexicana" anunciava "Kevin está cozinhando pra gente".
 
Chrissy é cantora. Seus shows acontecem muito raramente, sua voz não é lá essas coisas, as letras de suas músicas falam de anjos masculinos e outras besteiras recheadas de puro cliché. Pergunto se ela conhece uma dúzia de cantoras favoritas e, não, ela não parece estar muito informada da cena musical de NYC. Entretanto, é cantora. Não perde a oportunidade de empunhar sua guitarra e mostrar um pouco do seu trabalho. Tem um sorriso fabuloso. Pequenina, veste-se com estilo e bonézinhos charmosos.
 
Kevin não é seu namorado. E se fosse, talvez minhas esperanças pela carreira de Chrissy diminuissem mais ainda. Tem seu encantostreetwear, mas quando abre um sorriso, além dos olhos baixos e vermelhos, percebo que seus dentes são cáqui escuro, acavalados, sinuosos, atrapalhados. Kevin é uma figura simpática e silenciosa, que só responde aos impulsos de terceiros, mas não chega a emitir sinal algum.
 
Quando Chrissy começa a cantarolar sobre seus anjos masculinos, os olhos da mãe continuam vidrados na televisão sem som. O programa é uma espécie de "Plantão Médico" da vida real, com tripas, pernas estraçalhadas e tudo mais. Ela ainda não disse nada, o que causa um pequeno desconforto na gente, afinal é a dona da casa - a chefe da família. Parece ter acordado de manhã, carregado o rosto de um pancakedaqueles, sublinhado os lábios finos com um batom sei lá de que cor e ter se estabelecido no sofá, mesmerizada pelos terrores da vida segundo a TV americana.
 
Chrissy termina sua canção passando os dedos pelas cordas do violão e abrindo aquele sorriso de sempre. Batemos palmas, nós e Kevin. Em seguida, acendemos nossos cigarros e um cigarrinho daqueles. Educada e concerned, Chrissy nos oferece um comprimido de Claritin - de um dos muitos frascos de remédio que estão ali, disponíveis num criado mudo - mas eu prefiro não adicionar o antialérgico ao coquetel.
 
Conversa vai, conversa vem, algumas realidades daquela família começam a ser desveladas com uma naturalidade chocante: "A mamãe não parece, mas é uma mulher forte!" sorri Chrissy com seu bom humor habitual "O último namorado dava tanto soco na cara dela e ela nem caía nem nada. Podia ser uma boxeur". A mãe abre um sorrisinho, será de orgulho?, que interrompe seu transe. O contrangimento fica só do nosso lado. "Quase foi esfaqueada por ele, mas isso..." é interrompida pela protagonista da história. "Acho que isso ia acabar me derrubando".
 
"Kevin quase foi esfaqueado também" Chrissy diz em tom confessional. Depois eu ficaria sabendo que Kevin é um viciado em heroína emrehab. Está limpo [sic] há três anos e sua apatia vem de um dos vários medicamentos.
 
Os nachos estão prontos e, bem, estamos todos famintos. Começo a falar um pouco sobre o Brasil, sobre as pessoas normais e brilhantes e batalhadoras da nossa terra. Não sei se o faço por eles, pelo bem da nossa conversa ou por mim mesmo - que depois de cervejas, cigarrinhos daqueles e com imagens de facas, socos, drogas pesadas e carreiras de pouco sucesso já estou enveredando por uma badtrip. E o calor de casa é revigorante. A sensação de estar no meio de uma gente tão estranha já não me parece ruim - são personagens, são inspirações. Desde que o samba é samba, é assim.
 
Despedimo-nos de Chrissy e de sua família. Saímos cheios de curiosidade pelo metrô de Nova York - provavelmente o espaço mais fabuloso em que estive no mundo, sociologicamente falando. Quero ir mais na casa dessa gente toda: enxergar de perto as suas loucuras, chafurdar suas histórias escabrosas e, ainda assim, porque sou um sujeito perseverante, me encantar com sorrisos tão incríveis e misteriosos como os de Chrissy e Kevin.

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