quinta-feira, 20 de março de 2008

Alga

E mais uma vez chegara a uma ilha, pensou ao sentir a areia no rosto, invadindo a boca, e ao ver o nativo se aproximando para arrancar-lhe um bife da perna. O rosto dele me é familiar: um rosto mastigado pelo tempo e pelo sal que, sem espelho, já não se enxergava fazia anos - também um náufrago, deixado por dezenas de anos no meio do mar. Ao percebe-lo acordado se espanta!, mais uma coisa viva!, no meio daquele pedaço de terra ingrato que só lhe dava côco, água da chuva e sementes, muitas sementes. À confirmação de que está vivo reage com nenhum assombro, tenta arrancar alguma resposta: Você está bem? Qual o seu nome? De onde você vem? Tenta descobrir sua língua.

E ele, mais uma vez numa ilha, soergueu-se e caiu com força, rosto colado à areia. Escutou o velho náufrago fazer suas perguntas e permaneceu - ai de mim enfrentá-lo ou ouvi-lo; que o mar me trague de volta, me cuspa n'outro canto. Observava o rosto do companheiro e pensava: nunca, mais nunca mesmo. Quis dizê-lo, mas foi carregado à força até um porto seguro. Sentado na poltrona de plantas, o velho ofereceu água. Durante os goles, escutou-o sobre a cabana, sobre os côcos e a rotina dos dias. Não se detinha, entretanto, pois era distraído pela delícia d'água doce gole a gole.

Você pode viver aqui, lhe disse meio convite, e o hóspede refestelou-se para terminar a distração com um soninho de horas! Mas para tal, prosseguiu rude e ignorante como devem ser todos há muito afastados das boas maneiras, para tal, dedo em riste, vai precisar trabalhar!

No seu redor, a cabana eram folhas de coqueiro escoradas em uma complexa armação de restos de navios, e as estacas eram adornadas com estranhos desenhos, e os móveis tinham um formato inédito, uma utilização inusitada. Se precisava subir bem alto nos coqueiros para arrancar seu fruto, o velho havia inventado um guindaste; se precisava arrancar a carne do côco, talhara uma concha afiada. Que mais pudemos fazer, pensava o recém chegado, senão esperarmos outro barco, outro naufrágio, outra ilha? 

E o velho respondia num tom sábio e antigo: podemos ser!, olha só como estou sendo! Pegou-o pelo braço inconsciente das assaduras e levou-o consigo para lhe mostrar algo escondido. Estou aqui já faz décadas!, ou acha que eu nunca pensei isso tudo que você está pensando? Fala-me o que está pensando, vamos ver se é diferente?

Mas ele estava era mudo. Emudecido. Caminhou resignado até às atrações do velho náufrago sem dar um pio. Viu e ouviu um tipo de poesia que ele imprimia nas pedras, com lascas de madeira e montinhos de areia sobre a terra atendo-se apenas ao tema - desvarios do exílio numa ilha deserta! Lamentos, glórias, desafios. Sou como o limo que dá nessas pedras, professava o velho, sobrevive ao mar, ao sal e ao sol. Sobrevive ao calor e ao frio. É, sem poder ser, sozinho num pequeno pedaço de terra que só dá côco, água da chuva e sementes, muitas sementes. Os peixes que davam aqui perceberam seu predador, foram nadar num mar vizinho. Desvarios que o novato sentia seus dali alguns anos, embora se apegasse à vontade de que algum navio vivo lhe salvasse.

De volta ao acampamento, o velho lhe ofereceu uma mistura de raizes. Vai lhe fazer bem, acredite no que eu lhe digo: é a sílfide, um entorpecente, que lhe faria entrar em contato com os espíritos da ilha. Eles existem, falou como se tivesse certeza. Aliás existem mais coisas aqui do que julga a sua vã consciência. Além dos espíritos, também tem os demônios, as criaturas da noite, os canibais do outro lado da ilha. Você não pode ir lá, mas de jeito nenhum! Aquele lugar sombrio, que lugar mais terrível. Dizem, mas nisso não tenho certeza, que lá também vivem dez indiazinhas, todas virgens, prontas para saciar essa que é maior nostalgia dos náufragos. Nisso não tenho certeza, ao esvasiar completamente seu olhar por alguns mil segundos.

E ele estava era mudo. Emudecido. Segurou a sílfide com uma das mãos e com a outra coçou a cabeça indeciso. É um entorpecente mesmo?, pensou até cheirá-lo e quase engasgar de vez. 

Findos os mil segundos, o velho pegou também a sua porção e prosseguiu o sermão com: É uma erva sagrada, rapaz!, sempre o foi. Linda e branca, dá debaixo do solo, escondida por entre as plantas ordinárias. Toma e aproveita que o portal é finito e logo se fecha. Leve a mistura à boca e deixe-a misturar-se com a sua saliva, deixe-a reagir com as suas enzimas, deixe-a transformar a química do seu corpo. É uma erva sagrada, rapaz!, repetiu.

Botaram a mistura na boca juntos e não foram necessários mil segundos para que o velho lhe participasse da sensação que a droga causava no corpo: na barriga, no sentir do vento, no sentir da água. Vem comigo!, gritou num sopetão, olha que maravilha é pular e cantar?, num giro, num agudo, numa cambalhota n'areia. Vem! Levante-se! E aí já estava debatendo-se nas ondas, estirando-se nas pedras, sorrindo e entristecendo numa ginástica abdominal aplicada.

Será que o estou sentindo também?, passou a mão na barriga. Será que se imitá-lo tresloucado poderei senti-lo?

Levantou-se e berrou bem alto como se tentasse sentir a garganta entorpecida no grito. Chamou primeiro um navio e depois, tal que se adequasse, aos espíritos que não iam na sua vã consciência, e quando o viu, o velho náufrago, desaparecer dentro da cabana, talvez uma reza, uma conversa em privado, viu-se cara-a-cara com sua própria loucura. Vou é procurar minhas virgens!, respirou portanto. Essa erva sagrada, vou te contar um negócio, nem um baratinho!

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